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Das Unheimliche — Freud e a Estética da Estranheza

Por Renan Gonçalves

           Quando pensamos no surgimento da estética e seus objetivos, naturalmente trazemos para consideração uma certa conotação positiva, que usualmente aponta para o campo filosófico do qual se ocupa das questões referentes à beleza. O conceito, em geral, remete a Grécia antiga, embora a etimologia da palavra seja verificada primeiramente no século XVIII, com Alexander Baumgarten, que se valeu do vocábulo grego “aisthesis”, termo diretamente relacionado à percepção de mundo através dos sentidos e sensações. Partindo dessa premissa, Baumgarten estabeleceria a estética, dentro da filosofia, como o estudo e a interpretação do belo e da arte.

           Freud, inserido diretamente no contexto vitoriano, demonstrou grande interesse pelo conceito de estética, embora não pela estética tradicional que permeava os registros simbólicos daquela sociedade, mas por uma vertente atípica, que remetia ao horror e a estranheza, como verificamos em seu ensaio “O infamiliar: Das Unheimliche”  “De todo modo, aqui e ali, ele (psicanalista) percebe que pode se interessar por um domínio específico da estética, e então, trata-se de algo comumente deixado de lado, negligenciado pela literatura especializada. Algo desse domínio é o “infamiliar”. Não há nenhuma dúvida de que ele diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror (…) (FREUD, [1919] 2019, p. 65)

            Apesar das obras clássicas de autores como Edgar Alan Poe, Henry James, E.T.A. Hoffmann existirem, elas figuravam em um pequeno nicho, que hoje podemos categorizar como “horror psicológico” — subgênero esse que atualmente compreende diferentes mídias, como filmes, livros e jogos eletrônicos. Os autores desse gênero, ao contarem suas histórias, geralmente dispensam aquilo que é explícito e apostam no oculto, nas sugestões pontuais e no simbolismo, dentre outros elementos que, quando devidamente combinados, estremecem nossas percepções acerca do que é ou não real.

           Para entendermos o fenômeno, devemos considerar novamente o ensaio “Das Unheimliche”, onde o próprio título traz algumas respostas. De difícil semântica e consequentemente tradução, o vocábulo Unheimliche é esmiuçado por Freud ao longo da obra. No Brasil, a tradução já apareceu como “O Estranho” (Imago, 1990), “O Inquietante” (Cia das Letras, 2010) e finalmente a que seria mais próxima do real significado, “O infamiliar” (Autêntica, 2019). Heimliche pode significar aquilo que é familiar, mas quando unido ao prefixo un, ganha um sentido oposto (infamiliar), embora Freud não tenha tradado tais vocábulos como antagônicos. Familiar e infamiliar seriam, em um determinado sentido, complementares como ele sugere — “Uma vez que esse infamiliar nada tem realmente de novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e que foi afastado pelo processo de recalcamento. Essa relação com o recalcamento também lança luz, agora, à definição de Schelling, para quem o infamiliar seria algo que deveria permanecer oculto, mas que veio à tona.” (FREUD, [1919] 2019, p. 85)

           Vir à tona é justamente a fonte do desconforto, o superego atua como um censor, filtrando conteúdos indesejados e os lançando ao inconsciente, onde permanecem. Quando consideramos a estética do horror psicológico, verificamos nessas narrativas não tradicionais, o terror servindo como ferramenta metalinguística, com o intuito de reforçar e tornar ainda mais densas certas temáticas que, nesse tipo de obra, costumam figurar em primeiro plano — como solidão, medo, luto, ansiedade social, traumas, etc. Temas que interagem em certo nível com nosso inconsciente, abrindo pequenas janelas para que o conteúdo, outrora recalcado, venha à tona. Logo o sentimento de desconforto, a estranheza e o infamiliar experenciados ao consumir esse tipo de material.

           Se Freud explicou tudo, realmente é difícil garantir. Mas é certo que ainda podemos encontrar muitas respostas para questões atuais em suas obras.

FREUD, S. O infamiliar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.

Foto Autor

Renan Gonçalves, Estudante de Psicanálise pela Escola de Psicanálise de Curitiba. Licenciado em História e Habilitado em Filosofia pelo IMES. Crítico de Cinema. Redator e Criador de Conteúdo Digital.

5 respostas

  1. Parabens , Renan.
    Estamos na mesma turma de supervisão. Eu também sou graduado em filosofia ( com especialização em Estética), mas trabalho como roteirista e, por coincidência, estou trabalhando na adaptação do conto A MASCARA DE PRATA , escrito pelo Hug Walpole, q faz parte do livro FREUD E O ESTRANHO.- Contos fantásticos do inconsciente.

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